Cientistas capturam formação inicial do coração

Pela primeira vez, cientistas registraram em imagens o exato momento em que células do embrião de um mamífero começam a se transformar em tecido cardíaco. Utilizando microscopia de folha de luz em embriões vivos de camundongos, a equipe liderada pelo pesquisador Kenzo Ivanovitch, do University College London, acompanhou em tempo real a formação do coração desde os estágios iniciais da gastrulação até o desenvolvimento do tubo cardíaco primitivo.
O estudo, publicado no EMBO Journal, revela que os primeiros progenitores do coração não apenas surgem de forma independente, mas também seguem trajetórias de migração distintas que determinam se formarão partes específicas do coração, como o ventrículo esquerdo ou os átrios.
Migração celular orientada desde o início da gastrulação
Durante a gastrulação — processo embrionário em que os tecidos fundamentais do corpo começam a se formar — células do mesoderma se deslocam por longas distâncias dentro do embrião. Até recentemente, acreditava-se que esse movimento era desorganizado, mas o novo estudo mostra que há padrões discretos que guiam essas células rumo aos seus destinos cardíacos.
“As trajetórias de migração já estavam ligadas ao destino final das células. Aquelas que dariam origem ao ventrículo esquerdo, por exemplo, mostravam caminhos mais lineares e coordenados”, explicou Ivanovitch. “Isso sugere que o coração começa a ser esboçado muito antes de sua estrutura visível emergir.”
Dois grupos distintos de progenitores cardíacos
Ao rastrear mais de mil células em embriões cultivados por até 40 horas, os pesquisadores identificaram dois grupos principais de progenitores: os que formam o ventrículo esquerdo e o canal atrioventricular (LV/AVC), e os que darão origem aos átrios. Os primeiros surgem precocemente e se diferenciam em cerca de 15 horas; os segundos aparecem mais tarde e são recrutados durante a dobra do tecido embrionário que formará o coração.
“Esses dois conjuntos de células não apenas nascem em momentos diferentes, como também seguem rotas distintas dentro do embrião”, detalha Shayma Abukar, primeira autora do estudo. “É como se o coração fosse montado em fases, com peças vindas de locais e tempos diferentes.”
Células multipotentes e organização precoce
O estudo também revelou a presença de progenitores multipotentes — células que ainda têm a capacidade de se transformar em mais de um tipo celular — na região do mesoderma. No entanto, essa plasticidade dura pouco. A maioria das células se torna especializada logo após sua primeira ou segunda divisão celular, indicando que o destino cardíaco é determinado muito cedo no desenvolvimento.
Em testes complementares, as células destinadas ao pericárdio e ao endocárdio mostraram velocidades e padrões de migração diferentes, o que reforça a ideia de uma organização funcional já na fase embrionária inicial. “Ficamos surpresos ao ver que células com diferentes destinos cardíacos não apenas se comportam de forma distinta, mas também mantêm contato entre si ou se separam rapidamente dependendo de sua especialização”, observou Abukar.
Nova linha de camundongos fluorescentes permitiu rastrear o processo
Para registrar as imagens, os pesquisadores criaram uma linhagem transgênica de camundongos que expressa uma proteína fluorescente apenas em células cardíacas (cTnnT-2a-eGFP). Essa modificação permitiu observar, em tempo real, onde e quando essas células começavam a se diferenciar no embrião.
O uso de microscopia de folha de luz — técnica que minimiza danos ao tecido e permite longas sessões de filmagem — foi essencial. “Conseguimos capturar o momento em que a célula ainda estava migrando e, de repente, ativava os genes cardíacos. É literalmente o nascimento de uma célula do coração”, explicou Ivanovitch.
Relevância para estudos do desenvolvimento humano e medicina regenerativa
Embora realizado em camundongos, o estudo fornece pistas cruciais sobre o desenvolvimento cardíaco em mamíferos, inclusive humanos. Entender os primeiros passos da formação do coração pode ajudar a identificar causas de malformações congênitas e a refinar técnicas de geração de células cardíacas em laboratório.
“Nosso trabalho abre caminho para estudos mais precisos sobre como produzir células cardíacas específicas — como as do ventrículo ou do átrio — a partir de células-tronco”, afirma Ivanovitch. “Isso tem implicações importantes para terapias regenerativas e bioengenharia de tecidos.”
Momento em que um coração começa a se formar
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