Ferramentas feitas com ossos de baleia usadas há 20 mil anos

Um novo estudo publicado na Nature Communications revela evidências surpreendentes do uso de ossos de baleia por grupos humanos do Paleolítico Tardio. Pesquisadores identificaram mais de 170 fragmentos — incluindo ferramentas e ossos não trabalhados — em sítios arqueológicos localizados em cavernas e abrigos rochosos do norte da Espanha e sudoeste da França. Datados entre 20 mil e 14 mil anos atrás, esses materiais representam os artefatos feitos com ossos de baleia mais antigos conhecidos até hoje.
As descobertas mostram que as populações magdalenianas aproveitaram encalhes de cetáceos e transportaram partes de seus esqueletos para áreas afastadas da costa, onde esses ossos foram transformados em armas de caça.
Os artefatos foram encontrados em locais situados a vários quilômetros do mar, muitas vezes em regiões montanhosas como os Pireneus e a Cantábria. Em especial, na caverna de Santa Catalina — localizada a cerca de 70 metros de altitude e 4 a 5 km do mar — os pesquisadores encontraram ossos não trabalhados, com marcas de quebra feitas por humanos.
Essa logística de transporte sugere um esforço significativo para aproveitar os recursos oferecidos por baleias encalhadas ou carcaças trazidas pelas correntes, transformando seus ossos em matéria-prima para ferramentas.

A equipe usou uma técnica chamada ZooMS (Zooarqueologia por Espectrometria de Massa) para identificar as espécies a partir de colágeno ósseo. Foram reconhecidas pelo menos seis espécies: baleia-fin, cachalote, baleia-cinzenta, baleia-azul, toninha e uma espécie da família das baleias-francas (possivelmente a baleia-da-Groenlândia ou a franca-do-Atlântico Norte).
Essa diversidade evidencia que o ecossistema marinho do Golfo de Biscaia no final da última Era Glacial era rico e variado, com várias espécies hoje restritas a águas frias do Ártico.
A análise de isótopos estáveis de carbono e nitrogênio nos ossos revelou padrões compatíveis com as dietas atuais dessas espécies: baleias-fin e azuis se alimentavam de krill, cachalotes caçavam lulas em águas profundas, baleias-cinzentas forrageavam no fundo marinho e as baleias-francas provavelmente se alimentavam de copépodes.
Esses dados também sugerem que, apesar das mudanças climáticas desde o Pleistoceno, algumas estratégias alimentares dos cetáceos pouco mudaram — ao passo que outras podem ter sido influenciadas por transformações no ambiente e na cadeia alimentar marinha.
A maioria dos artefatos identificados são pontas de projéteis e hastes intermediárias (foreshafts), ou seja, partes integrantes de armas de caça. Esses objetos eram tipologicamente semelhantes às tradicionais pontas feitas com chifre de cervídeo, comuns entre os grupos magdalenianos.
Os autores apontam que ossos de baleia, por suas dimensões e características estruturais, ofereciam vantagens mecânicas — permitindo, por exemplo, a fabricação de lanças mais longas e resistentes.
O uso intensivo de ossos de baleia para fabricação de ferramentas teve seu auge entre 17.500 e 16.000 anos atrás. Depois disso, os objetos praticamente desaparecem do registro arqueológico. O estudo sugere que esse desaparecimento pode ter relação com o fim das redes de troca e circulação entre grupos costeiros e os que ocupavam regiões mais elevadas, cujos sítios arqueológicos hoje estão preservados.
Como muitas das áreas costeiras foram inundadas pela elevação do nível do mar nos milênios seguintes, parte importante dessa história pode ter se perdido.
Na caverna de Santa Catalina, fragmentos não trabalhados de ossos muito porosos — alguns deles com marcas de percussão — levantam a hipótese de que poderiam ter sido usados como fonte de gordura ou óleo. Há ainda registros de barnacles (cracas) de baleia em outros sítios, o que indica que a pele ou a gordura também eram transportadas e aproveitadas.
Embora apenas os ossos resistam no registro arqueológico, o estudo sugere que outros materiais — como barbas (estruturas filtradoras de queratina) e carne — também tenham sido usados.
As evidências reunidas nesta pesquisa mostram que as populações do Magdaleniano mantinham uma relação próxima com o ambiente costeiro. Mesmo sem tecnologia náutica ou técnicas de caça marítima desenvolvidas, essas comunidades demonstraram capacidade de explorar recursos oferecidos pelo litoral de maneira sofisticada e adaptativa.